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Parcela variável de indisponibilidade e suas implicações para as transmissoras de energia elétrica: Penalidade ou incentivo regulatório?

Por Gustavo Toniol e o Igor Caldas

Artigo originalmente publicado no portal Migalhas.


1. O que é e para que serve a parcela variável de indisponibilidade?


A PVI - Parcela Variável de Indisponibilidade é um mecanismo financeiro de penalização pecuniária aplicado às transmissoras de energia elétrica no Brasil quando ocorre indisponibilidade temporária de suas LTs - Linhas de Transmissão. A PVI - prevista nos contratos de concessão das transmissoras - faz parte do modelo regulatório da ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica para garantir a qualidade e confiabilidade do serviço prestado pelas concessionárias e permissionárias do setor elétrico.


Seu cálculo é baseado em indicadores que medem o tempo e a frequência das interrupções, impactando a receita da concessionária conforme as regras estabelecidas. Em suma, realiza-se um "desconto" na RAP - Receita Anual Permitida da transmissora de maneira proporcional ao tempo em que o ativo esteve indisponível.


A aplicação de penalidade pecuniária com fundamento na PVI ocorre quando o desligamento é atribuído à responsabilidade da transmissora. Alguns dos principais exemplos que podem resultar na penalidade são:


Falhas técnicas ou operacionais na linha ou equipamentos de transmissão.

Atrasos na recomposição do sistema após eventos adversos.

Falta de manutenção preventiva adequada, resultando em falhas inesperadas.

Obras ou intervenções programadas sem a devida autorização e coordenação com o ONS - Operador Nacional do Sistema Elétrico.

Doutro lado, o tema espinhoso referente à penalização por PVI decorre dos eventos de caso fortuito ou força maior.


Em regra, os contratos de concessão determinam o afastamento da responsabilidade da transmissora de energia quando o desligamento da Linha de Transmissão ocorrer por evento fortuito ou de força maior, a exemplo: atos de sabotagem, terrorismo, eventos de calamidade pública, ou simplesmente eventos impossíveis de se prever ou prevenir, como acidentes aéreos que recaiam sobre as linhas de transmissão.


A bem da verdade, o conjunto de eventos imprevisíveis já noticiados que culminaram no desligamento de Linhas de Transmissão é amplo e, justamente por isso, as transmissoras de energia recorrem à previsão contratual para garantir que não serão penalizadas por meio da aplicação da PVI.


Além da figura da ANEEL, um outro ator relevante nesta relação é o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), entidade responsável pela aplicação da penalidade por PVI quando constatada a indisponibilidade das linhas de transmissão.


Como medida primária, as transmissoras de energia podem requerer administrativamente a isenção da referida penalidade. Havendo enquadramento do evento como caso fortuito ou de força maior, a rigor, a transmissora não deverá ser penalizada.


Nesse contexto, duas normativas são fundamentais para definir a possibilidade de isenção da PVI. A primeira é a Resolução Normativa ANEEL 729/16, que disciplina a qualidade do serviço público de transmissão de energia elétrica, abrangendo aspectos como a disponibilidade e a capacidade operativa das instalações sob responsabilidade das concessionárias de transmissão integrantes da Rede Básica, bem como das instalações de transmissão destinadas a interligações internacionais conectadas a essa rede.


A segunda é a Resolução Normativa ANEEL 906/20, a qual adotou novas regras para os serviços de transmissão de energia elétrica e dispôs, novamente, quanto às hipóteses de suspensão das penalidades por caso fortuito ou força maior.


O imbróglio, no entanto, decorre da negativa de isenção de penalidade por ausência de enquadramento do evento às hipóteses previstas no contrato de concessão. Sendo certa a possibilidade do Poder Judiciário analisar a legalidade dos atos administrativos, abre-se um conjunto de possibilidades para o ajuizamento de ações com objetivo de anular as penalidades por PVI.


2. A natureza jurídica da PVI: Penalidade ou mero desconto?


Muito se discute, nas ações anulatórias decorrentes da aplicação da PVI - Parcela Variável de Indisponibilidade, a sua natureza jurídica.


Por um lado, argumenta-se que a PVI não deve ser considerada uma penalidade, mas sim um incentivo regulatório. Isso porque sua incidência decorre de critérios objetivos que regulam a remuneração da concessionária: havendo indisponibilidade da linha de transmissão, aplica-se a PVI proporcionalmente ao tempo indisponível; não havendo indisponibilidade, não há desconto. Esse entendimento, inclusive, já foi reconhecido judicialmente:


DIREITO ADMINISTRATIVO. DIREITO REGULATÓRIO. CONTRATO DE CONCESSÃO. AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA - ANEEL. OPERADOR NACIONAL DO SISTEMA ELÉTRICO - ONS. TRANSMISSÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. ATRASO NA ENTRADA EM OPERAÇÃO COMERCIAL DE LINHA DE TRANSMISSÃO. DESCONTO DA PARCELA VARIÁVEL POR ATRASO. ALEGADA VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. [...]

À concessionária é assegurado o recebimento de remuneração pelo fato objetivo de entregar instalações aptas ao uso, independentemente de estar ou não a energia percorrendo a rede. Por outro lado, havendo indisponibilidade da Função de Transmissão - FT, estabelecem o contrato e os atos normativos regulatórios a diminuição da Parcela Variável - Como o desconto diz respeito a fatos objetivos, que determinam a forma de remuneração do concessionário, prestando-se apenas a definir a Receita Anual Permitida - RAP e, logo, os respectivos duodécimos, não se pode pretender que sejam sempre precedidos de contraditório e ampla defesa. De posse das informações colhidas no sistema o respectivo operador faz os levantamentos, apura os valores efetivamente devidos e comanda os pagamentos - A lógica do sistema assim funciona, devendo a concessionária, caso repute que a RAP e respectivos duodécimos foram apurados de forma equivocada, provocar a ANEEL, de modo a viabilizar a revisão e, se for o caso, a recontabilização (retificação de evento já contabilizado), para posterior ressarcimento, como previsto na Resolução Normativa ANEEL 372, de 28.07.2009 (sucedida pela Resolução Normativa 756, de 16.12 .2026) - Não se pode confundir aplicação de descontos para definição da remuneração do concessionário com penalidade decorrente de atividade sancionatória a qual, esta sim, pressupõe prévio contraditório e ampla defesa. [...]

(TRF-4 - AC: 50506885320154047000 PR 5050688-53.2015 .4.04.7000, Relator.: RICARDO TEIXEIRA DO VALLE PEREIRA, Data de Julgamento: 16/09/2020, QUARTA TURMA)


Por outro lado, há quem defenda que a PVI possui, sim, natureza punitiva, e que classificá-la como um mero incentivo regulatório não reflete sua real finalidade. Afinal, não há um incentivo positivo para que as linhas de transmissão permaneçam em pleno funcionamento, mas sim um mecanismo que impõe uma redução da RAP caso a indisponibilidade ocorra, ainda que por eventos alheios à vontade da concessionária.


A título de comparação, não se discute se um condutor que desrespeita um sinal vermelho está sendo "incentivado" a não cometer a infração ou se está sendo "punido" pelo Departamento de Trânsito mediante a aplicação de multa e pontos na carteira. A sanção ocorre objetivamente como consequência do descumprimento de uma regra, independentemente da intenção do condutor. Assim, o simples fato de a PVI ser aplicada a partir de um cálculo aritmético proporcional ao tempo de indisponibilidade não descaracteriza sua natureza punitiva.


O que a Administração Pública impõe, de fato, às concessionárias é a obrigação de continuidade da prestação do serviço público. No entanto, não cabe à Administração aplicar penalidades sem a devida apuração prévia da responsabilidade da concessionária. Como qualquer sanção, a PVI deveria ser precedida de um procedimento formal que garantisse o contraditório e a ampla defesa, permitindo que a concessionária apresentasse justificativas e elementos que demonstrassem a inexistência de culpa ou a ocorrência de caso fortuito ou força maior.


Diante disso, seria imprescindível a reformulação do procedimento de aplicação da PVI, assegurando que, antes da imposição do desconto, houvesse um processo administrativo adequado para aferir a responsabilidade da concessionária. Essa necessidade se torna ainda mais evidente nos casos em que a indisponibilidade decorre de fatores externos, alheios ao controle da empresa.


É justamente essa questão - os impactos de eventos imprevisíveis e inevitáveis na aplicação da PVI - que será analisada a seguir.


3. A PVI e seus desafios: segurança jurídica, regulação e judicialização


A previsibilidade normativa e decisória, conforme bem ressalta Serpentino1, decorre da possibilidade de antecipar um contingente futuro. Similarmente, para Guastini2, o direito é certo quando o indivíduo pode prever com precisão as consequências jurídicas de suas ações ou pode conhecer, previamente, os limites dos poderes coercitivos do Estado.


A previsibilidade regulatória, por sua vez, é essencial para garantir investimentos sustentáveis no setor elétrico: sem previsibilidade não há segurança jurídica, e a ausência de segurança jurídica enfraquece a atividade econômico-financeira das empresas, reduzindo-se os incentivos para investimentos nos setores afetados.


É dizer: sem critérios claros e objetivos para a caracterização de eventos de força maior, o risco para as transmissoras se torna excessivo, podendo comprometer o equilíbrio econômico-financeiro das concessões e desestimular novos investimentos.


Se, em decorrência de um evento, a ANEEL entende pela aplicabilidade da hipótese de isenção da penalidade por PVI, não poderia a Agência, ao se deparar com fatos idênticos - ou suficientemente similares - adotar posição diametralmente oposta, sob pena de violação à segurança jurídica e à previsibilidade regulatória.


A tomada de decisão das agências reguladoras, portanto, deve se basear na previsibilidade e na segurança jurídica. Se, no caso das transmissoras, há previsão legal e contratual de isenção de penalidades por PVI quando configurado o caso fortuito ou de força maior, restaria, então, entender as hipóteses de cabimento desse pedido de isenção.


4. Isenção de PVI na prática: o que já decidiu a ANEEL?


Há dois precedentes de 2022 que tratam de casos em que ANEEL decidiu pela inaplicabilidade da PVI, referentes a atos de sabotagem e quedas de balões tripulados3.


Na ocasião, por meio do Voto da Relatora, dispôs-se que "a responsabilidade pelo evento não pode ser atribuída ao agente quando presentes as causas de exclusão do nexo causal entre sua conduta e o resultado. Em outras palavras, a isenção de responsabilidade se dá nos casos em que fatos externos à conduta do obrigado geram a impossibilidade do cumprimento do dever a ele imposto ou mesmo quando o resultado aferido decorre de circunstâncias alheias à vontade do sujeito".


Isto é, caso a concessionária tenha envidado todos os esforços necessários para prevenir acidentes que acarretem a indisponibilidade da LT e, mesmo assim, ocorra um evento imprevisível e inevitável, alheio à sua vontade e ao seu controle, poderá ser afastada a aplicação da PVI.


A verdade é que a aplicação da PVI dependerá do caso concreto e caberá à concessionária provar sua inaplicabilidade pela demonstração das medidas preventivas adequadas e a comprovação de que o evento danoso decorreu de circunstâncias extraordinárias.


Mais uma vez, reforça-se que, para evitar arbitrariedades, seria imprescindível um procedimento prévio para aferição da responsabilidade da concessionária antes da imposição da PVI. Somente a partir dessa análise seria possível assegurar que a penalidade seja aplicada de forma justa e proporcional, em consonância com os princípios da razoabilidade e da segurança jurídica.


E, como consequência direta, reduzir-se-ia o conjunto de ações anulatórias ajuizadas contra as decisões, do ONS e da ANEEL, referentes à aplicação da penalidade de PVI.


5. Considerações finais


A PVI - Parcela Variável de Indisponibilidade é um mecanismo regulatório que impacta diretamente a remuneração das concessionárias de transmissão de energia elétrica. Sua aplicação busca garantir a disponibilidade das Linhas de Transmissão, penalizando financeiramente as transmissoras quando há interrupções no serviço. No entanto, a rigidez do modelo e sua aplicação automática geram questionamentos sobre sua adequação e proporcionalidade.


A isenção da PVI em casos de força maior ou caso fortuito é um tema central no debate regulatório. Os contratos de concessão preveem que as transmissoras não podem ser responsabilizadas por eventos imprevisíveis e inevitáveis, como sabotagem, terrorismo ou desastres naturais. Contudo, a negativa da ANEEL em conceder isenção em determinados casos tem levado as concessionárias a recorrerem ao Judiciário para garantir a aplicação dessas exceções.


A natureza jurídica da PVI ainda gera controvérsias. Enquanto alguns defendem que se trata de um mero incentivo regulatório, pautado em critérios objetivos para ajustar a remuneração das transmissoras, outros argumentam que sua aplicação automática e sem contraditório evidencia seu caráter punitivo. A ausência de um procedimento administrativo prévio para sua aplicação reforça a insegurança jurídica para as concessionárias.


A segurança jurídica e a previsibilidade regulatória são fundamentais para a estabilidade do setor elétrico. A adoção de critérios claros e uniformes na aplicação da PVI e na concessão de isenções evitaria decisões contraditórias e garantiria um ambiente regulatório mais equilibrado. A divergência de entendimentos sobre a aplicação da penalidade compromete a confiança dos agentes do setor e pode desestimular novos investimentos.


Por fim, a jurisprudência da ANEEL sobre a isenção da PVI demonstra que há precedentes favoráveis à exclusão da penalidade em casos excepcionais, mas a análise permanece casuística e sujeita a interpretações variáveis. Para garantir um tratamento justo e previsível às concessionárias, seria imprescindível a formalização de um procedimento administrativo específico para a apuração da responsabilidade antes da imposição da penalidade. Essa medida reduziria o volume de litígios e asseguraria a aplicação da PVI de forma mais justa e proporcional.


_______


1 SERPENTINO, Daniel. A insuficiência da previsibilidade normativa e decisória para a consecução da segurança jurídica no âmbito da regulação econômico-empresarial. Tese de Doutorado, disponível em: http://bibliotecatede.uninove.br/handle/tede/3225.


2 GUASTINI, R. Prefácio da Edição em Inglês. In Ávila, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. - 6ª. ed., rev., atual. e ampl. - São Paulo: Malheiros, 2021, p.21.



 
 
 

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