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Foto do escritorNavarro Prado

As polêmicas sobre a regulação de ferrovias no Brasil

O desenvolvimento do setor ferroviário é fundamental para o bom funcionamento econômico de um país de proporções continentais, como o Brasil. Contudo, a regulação das autorizações e concessões ferroviárias ainda é um tema que enseja muito debate e abarca questões polêmicas.

Por essas razões, conversamos com Lucas Navarro Prado, especialista em estruturação de negócios e solução de litígios envolvendo ativos de infraestrutura pública no Brasil, sobre as principais discussões acerca do tema. Confira o bate-papo na íntegra abaixo.

Como adotar mecanismos que equilibrem o poder de monopólio natural que existe em grandes corredores logísticos que hoje estão sob regime de concessão?

Existe a preocupação de que os grandes corredores logísticos, que hoje estão sob regime de concessão, tenham mecanismos que, de alguma forma, criem um balanceamento desse poder de monopólio natural, dessa posição dominante das concessionárias. Nesse sentido, por exemplo, a previsão de proteções especiais para “usuários dependentes” e “usuários investidores”, bem como a possibilidade de que os usuários contratem operadores ferroviários independentes, os antigos OFIs, que a lei nova chama de agentes transportadores ferroviários. A ideia por trás dessas figuras é justamente dar melhores condições para os usuários enfrentarem o desnível de poder causado pela situação de monopólio natural.

Então, qual é a questão? Quando a lei cria a figura da autorização, ela diz que a autorização tem por objeto uma ferrovia privada. Ela não diz que serão aplicáveis todas essas características que existem para a ferrovia concedida, em termos de proteção aos usuários. Então, em tese, haveria um monopólio natural, porque do ponto de vista econômico, ele não deixa de ser um monopólio quando eventualmente uma empresa privada recebe uma autorização para atuar em um trecho desse corredor logístico de integração nacional; só que, agora, um monopólio natural não regulado. Isso me parece um verdadeiro, com o devido respeito, absurdo.

Mesmo em países tradicionalmente mais liberais, nós sempre tivemos uma regulação sobre a situação do monopólio natural. Então, não é admissível que se possa imaginar que nós vamos ter um monopólio natural em um corredor logístico de integração, alguém que entra e faz o investimento e aí simplesmente não vai estar sujeito a uma regulação que proteja de alguma forma ou que exija compartilhamento com os usuários dos ganhos que vão advir da exploração daquela infraestrutura.

Como fazer a regulação de casos de autorizações que tenham por objeto ferrovias estruturantes?

A minha sugestão é que a regulamentação procure, no caso das autorizações que tenham por objeto ferrovias estruturantes, aproximar a regulação incidente ao mesmo padrão que as concessionárias estão sujeitas.

Imagine-se, por exemplo, um corredor de leste a oeste no qual, em cada uma das pontas, existam trechos concedidos e, no meio, alguém receba uma autorização. Não faz sentido aceitar que o autorizado, que detém o direito de exploração do trecho no meio do corredor, um trecho, portanto, de interconexão, possa simplesmente atuar como monopolista sem qualquer tipo de regulamentação, sem ter obrigação de dar direito de acesso a terceiros, sem ter eventualmente um teto que ele vai cobrar pra dar esse direito de acesso, sem ter obrigação de gerar capacidade disponível para que os terceiros possam acessar aquela ferrovia, sem ter preocupação com as condições, digamos assim, de interoperabilidade, de conectividade desse trecho em relação aos outros trechos também desse corredor de integração.

Não faz sentido o Governo, nos corredores estruturantes sujeitos a concessão, exigir um parâmetro de velocidade, de qualidade de sinalização; e, de outro lado, o sujeito da autorização, que faz parte desse corredor, não ter qualquer exigência nesse sentido.

No limite, a gente poderia ter um corredor em que o trem, por exemplo, anda a 40 km/h no trecho sob concessão e, quando chega no trecho da autorização, tem que reduzir essa operação para 20 km/h, porque o trecho da autorização está em condições piores e o Governo não tem o que fazer em relação ao autorizatário, sob o argumento de que o trecho é considerado simplesmente uma ferrovia privada. Esse conceito não pode prevalecer.

Do ponto de vista constitucional, é preciso lembrar, temos um serviço que é sempre de titularidade pública. Ainda que em um regime de autorização e que a propriedade da ferrovia seja privada, a titularidade do serviço é pública. Então, não faz sentido, mesmo que a ferrovia seja privada, que ela não tenha a possibilidade de sofrer a incidência de uma regulação mais forte nesses casos de ferrovias estruturantes.

Como definir quais ferrovias são estruturantes?

A regulação deveria separar claramente esses dois grandes grupos. O critério para isso, pra tentar ser objetivo, é identificar esses trechos dentro do subsistema federal já normatizado. Nós podemos, ainda, até atribuir essa competência [de identificar os trechos estruturantes] ao Ministério de Infraestrutura, para que nós tenhamos não apenas um critério material, mas também um critério formal para definir os trechos estruturantes.

Do ponto de vista material, seria um trecho que faz parte de um corredor logístico que conecta um porto ou que faz a interligação entre regiões do país, entre as capitais do país. Do ponto de vista formal, essa análise e identificação seria feita pelo próprio Ministério de Infraestrutura. Isso deixaria fora de dúvida quais são as ferrovias estruturantes no país e, portanto, quem viesse a operar uma ferrovia estruturante, seja no modelo de concessão, seja no modelo de autorização, teria que se submeter a essas grandes preocupações regulatórias de acesso a terceiros, de proteção ao usuário, de gerar capacidade disponível sempre para que as pessoas possam se beneficiar também da ferrovia, e não apenas o monopolista da vez.

No final de 2021, o assessor especial do Ministério da Infraestrutura Marcos Kleber Felix afirmou que ferrovias por autorização podem gerar benefícios mesmo se não forem construídas. Qual o seu entendimento sobre o tema?

Não basta ter a perspectiva de uma ferrovia por autorização para que ela gere benefício. Essa perspectiva tem que estar dentro da realidade. Se as pessoas olham, as concessionárias olham, até com um certo desdém, dizendo assim: “Tudo bem, o sujeito recebeu autorização, mas não tem a menor chance de fazer uma ferrovia nessas condições”; então, isso não gera efeito positivo algum.

É pura especulação e com um risco importante, porque se alguém fala que vai fazer uma ferrovia em determinado local, isso muda, digamos assim, a dinâmica do mercado imobiliário naquela região. Teoricamente, existirão desapropriações, de maneira que muitas pessoas serão afetadas pela simples ideia de que vai passar uma ferrovia naquele local.

Então, dado o potencial prejuízo, inclusive dessas pessoas que são afetadas pela ideia de que vai passar uma ferrovia e que, em tese, serão desapropriadas, versus o benefício simplesmente da especulação, não me parece razoável que assim possa ser.

De qual maneira isso pode ser resolvido?

Qualificando melhor as exigências para que alguém possa receber uma autorização. Aqui, eu poderia falar de dois pontos. Primeiro, precisa ter um Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) detalhado. Por quê? Porque a ferrovia pode gerar impactos relevantes e isso precisa ser discutido a priori. Temos que saber se realmente existe viabilidade econômica, técnica e ambiental antes de receber uma autorização, movimentar o mercado imobiliário e afetar preços de proprietários de imóveis na região.

E mais, se alguém acredita que esse projeto é viável, me parece importante que ele ofereça algum tipo de garantia em termos de cronograma e do ponto de vista financeiro, confirmando que o autorizatário teria condições de levar esse projeto adiante.

Falando sobre cronogramas, como você enxerga a importância de exigência de garantias e do cumprimento de cronograma em autorizações de ferrovias?

A importância do cronograma é fundamental, inclusive, para o Governo planejar outros empreendimentos. Por exemplo, o Governo deu uma autorização para a Ferrogrão e, ao mesmo tempo, existe uma concessão de rodovia praticamente paralela à Ferrogrão. Se não houver um cronograma firme de implantação da Ferrogrão nessa autorização, ela passa a ser uma especulação e pode levar o Governo a tomar decisões equivocadas em relação à rodovia, bem como em relação ao projeto de concessão da Ferrogrão que está obstado neste momento por uma decisão do Ministro Alexandre de Moraes.

Portanto, o cronograma precisa ser firme de alguma forma para que as pessoas possam se planejar. O próprio Governo e também outros players da iniciativa privada que eventualmente dependerão dessa ferrovia precisam desse planejamento. Caso contrário, é pura especulação.

A garantia financeira, de certa forma, estabelece um incentivo para que esse cronograma seja cumprido. Trata-se de um sinal financeiro de que quem vai participar está comprometido com o projeto e com condições de levá-lo adiante.

As atuais concessionárias de ferrovias devem ter direito de preferência dentro da sua área de influência? E como seria definida essa área de influência?

A questão do direito de preferência foi objeto de veto pelo Presidente da República e, portanto, não se sabe ainda como ficará esse ponto, dado que ainda não houve a apreciação do veto pelo Congresso Nacional.

De qualquer forma, primeiro, é preciso compreender o que significa esse direito de preferência. O artigo vetado não é muito claro a respeito. Pra mim, é natural que seja estabelecida uma proteção sobre a área de influência.

Mas qual seria a área de influência? Imagine-se, por exemplo, um trecho que está conectando uma região no norte de Goiás até uma região no sul de Goiás. Poderemos definir que a área de influência é só o Estado de Goiás ou uma faixa, por exemplo, de 200 km à direita ou à esquerda daquela ferrovia, ou de 5 km à direita ou à esquerda da ferrovia. Ou essa área de influência deve adentrar, por exemplo, uma parte nos estados circunvizinhos?

É evidente que a eventual autorização de um trecho ferroviário muito próximo ou paralelo a uma ferrovia concedida vai levar a discussões de reequilíbrio da concessão. Então, nesses tipos de situação, permitir que a concessionária possa ter um direito de preferência me parece adequado até como mecanismo para combater ou mitigar a chance de o Governo ter que reequilibrar a concessão.


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