1. Introdução
Em 14 de junho de 2024, foi publicada a Lei Federal nº 14.898, a qual instituiu diretrizes para a tarifa social aplicável aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.
Nos termos da referida Lei, terão direito à tarifa social os usuários com renda per capita de até ½ salário-mínimo que preencham os seguintes requisitos: (i) pertençam a família de baixa renda ou inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais ou no sistema cadastral que venha a sucedê-lo; ou (ii) pertençam a família que tenha, entre seus membros, pessoa com deficiência ou pessoa idosa com 65 anos de idade ou mais que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família e que receba o Benefício de Prestação Continuada ou benefício equivalente que venha a sucedê-lo (art. 2º).
A tarifa social de água e esgoto, vale esclarecer, consistirá em percentual de desconto de 50% sobre a tarifa aplicável à primeira faixa de consumo – primeiros 15 m³ –, observadas as diretrizes da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (“ANA”) (art. 6º).
O regramento fixado pela Lei será aplicável a todo o território nacional, trazendo repercussões à prestação dos serviços de esgotamento sanitário e abastecimento de água em todo o país. Esse cenário torna relevante a compreensão quanto à vigência da Lei em exame, bem como quanto à preservação da garantia constitucional ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, temas que serão objeto da presente publicação.
2. Vigência da Lei
A vigência da Lei se iniciará após 180 dias da sua publicação oficial, conforme expressamente previsto em seu art. 13. Nesse sentido, referida Lei somente entrará em vigor em meados de dezembro de 2024, sendo que, até lá, o cumprimento das suas disposições não será exigível aos titulares e prestadores dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.
Recentemente, inclusive, o Ministro Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, ressaltou a inexigibilidade de aplicação da Lei no presente momento, considerando o seu período de vacatio legis. É o trecho da decisão ADPF 1187/SE[1]:
“Em segundo lugar, ressalto que a Lei n. 14.898/2024, que instituiu as diretrizes da Tarifa Social de Água e Esgoto ainda não está em vigor. Não se pode exigir, portanto, aplicação retroativa de lei em vacatio legis, que é o pedido formulado pelo autor. Ainda que esteja em andamento, é certo que o edital foi publicado antes da edição daquele diploma federal, estando sujeito às normas vigentes à época, o que, repita-se, não é o caso da Lei n. 14.898/2024, que somente produzirá efeitos a partir de 11 de dezembro próximo.” (ADPF 1.187/SE. Rel. Min. Nunes Marques. Julgamento em 03/09/2024. Publicação em 05/09/2024) (Grifos nossos).
A vacatio legis propicia prazo para que os titulares e os prestadores dos serviços planejem a melhor forma de observar as exigências da Lei, o que deverá ocorrer de modo a preservar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos existentes, como se verá a seguir.
3. Implementação da tarifa social nos contratos de abastecimento de água e esgotamento sanitário e preservação de seu equilíbrio econômico-financeiro
A preocupação referentemente à preservação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de prestação de serviços de saneamento básico foi refletida em dispositivos da própria Lei. Em resumo, a Lei estabeleceu: (i) que a instituição da tarifa de água e esgoto, considerando o regramento relacionado à tarifa social previsto na Lei, somente será eficaz mediante prévia recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato; (ii) que, no caso de instituição ou alteração da categoria tarifária social, o prestador do serviço terá direito ao reequilíbrio econômico-financeiro sendo que o custo da tarifa social será dividido entre os outros blocos e categorias de consumidores; e (iii) qualquer alteração na participação relativa da tarifa social em relação à tarifa de água e esgoto “base” deverá ser reequilibrada para o prestador do serviço. São os dispositivos presentes na Lei:
“Art. 6º (...) § 3º A instituição da Tarifa de Água e Esgoto, nos termos desta Lei, deverá preservar o direito adquirido e somente será eficaz em relação ao prestador do serviço mediante prévia recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, observada a legislação aplicável.
Art. 8º (...) § 1º Nos casos em que a categoria tarifária social houver sido instituída ou alterada, o prestador do serviço terá direito ao reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, e o custo da Tarifa Social de Água e Esgoto será dividido entre os outros blocos e categorias de consumidores da área de atuação do prestador do serviço.
§ 2º É vedado limite de incidência para a Tarifa Social de Água e Esgoto, de forma que qualquer alteração na participação relativa da tarifa deverá ser reequilibrada para o prestador do serviço, no que couber.” (Grifos nossos)
Sobre o tema, ainda, vale mencionar que a ANA, em sua Norma de Referência nº 5, listou a mudança de legislações e regulamentos após a publicação do edital ou celebração do contrato como um dos riscos da matriz de riscos padrão proposta. In verbis:
Risco 25: “Mudanças, após a publicação do edital ou celebração do contrato existente não licitado, nas legislações e regulamentos ou no entendimento de autoridades públicas, desde que consolidado por tribunais superiores, portarias, pareceres e demais documentos aplicáveis, que afetem diretamente os encargos, tributos, custos e receitas da prestação do serviço, ressalvados os impostos sobre a renda” (Grifos nossos).
Pela norma da ANA, referido risco deve ser atribuído ao titular dos serviços, reforçando a ideia de que seria devida a recomposição do equilíbrio econômico-financeiros em favor dos prestadores de serviço, sempre respeitadas as previsões contratuais, evidentemente.
Ainda em relação à ANA, a Lei estabeleceu que a tarifa social seguirá, preferencialmente, a norma de referência sobre estrutura tarifária publicada pela agência (art. 7º), em cumprimento à competência que lhe foi atribuída pela Lei Federal nº 9.984/2000[2]. Embora a norma de referência mencionada ainda não tenha sido editada, a ANA já deu início aos procedimentos de participação social para sua formulação, como se observa pela Tomada de Subsídios nº 05/2024[3].
Na Tomada de Subsídios, a ANA apresentou questionário para colher percepções e sugestões quanto aos temas que deverão ser abordados na norma de referência em elaboração, cabendo destaque aos seguintes tópicos:
“Objetivos do Desenho Tarifário e Grau de Detalhamento da NR
1. Considerando os objetivos da estrutura tarifária listados abaixo, informe qual sua opinião quanto à relevância de cada princípio abaixo. Utilize a seguinte escala: (1) nada importante; (2) pouco importante; (3) importante; (4) muito importante; (5) extremamente importante. Não precisa haver ordem hierárquica entre os princípios, ou seja, um mesmo grau de importância pode ser atribuído a diferentes objetivos
a) Sustentabilidade Econômico-Financeira: objetiva a recuperação plena dos custos da prestação do serviço por meio das tarifas;
b) Eficiência Econômica: estabelece que as tarifas devem ser fixadas ao valor mais próximo o possível do custo marginal da prestação dos serviços, ou seja, as tarifas cobradas se aproximam do valor que vigoraria numa estrutura de mercado competitivo;
c) Equidade: define que a política tarifária garanta acesso adequado à água, em quantidade e qualidade, a todos os usuários, considerada a capacidade de pagamento destes;
(...)
Categorias e Faixas
9. Com relação ao número de faixas de consumo para uma determinada categoria de usuário, a NR de estrutura tarifária:
a) não deve apresentar uma diretriz;
b) deve apresentar uma recomendação, sem exigir a necessidade de justificativa para uma quantidade de faixas diferente da recomendada, baseada em diferenças dos padrões de consumo da categoria;
c) deve apresentar uma recomendação, que contemple a necessidade de justificativa para o número de faixas baseada em diferenças dos padrões de consumo da categoria;
(...)
Tarifa Social
11. A cobrança de uma tarifa de valor módico (inferior à tarifa social) para população vulnerável:
a) não deve ser regulamentada pela norma;
b) deve ser regulamentada pela norma, com valor fixo, independente do consumo;
c) deve ser regulamentada pela norma, com valor fixo e limite de consumo para recebimento do benefício;
d) deve ser regulamentada pela norma com percentual de desconto em relação ao valor da tarifa social.”
Em resumo, em relação ao tema discutido nesta publicação, a ANA solicitou que os participantes opinassem quanto: (i) à importância de princípios como sustentabilidade econômico-financeira, eficiência econômica e equidade; (ii) à forma como as categorias e faixas de consumo deverão ser abordadas na futura norma de referência; e (iii) à eventual previsão de regramento sobre tarifa módica, inferior à tarifa social, para a população vulnerável.
Conquanto a norma de referência ainda esteja em elaboração, observa-se que a ANA abordou aspectos ligados à tarifa social na Tomada de Subsídios aberta. Ao todo, foram recebidas 256 contribuições na Tomada de Subsídios, as quais deverão ser consideradas pela ANA na minuta que deverá ser posta para Consulta e Audiência Públicas.
4. Considerações finais
A equipe da Navarro Padro, Nefussi Mandel & Santos e Silva permanecerá acompanhando de perto o tema, apresentando contribuições que se fizerem oportunas, bem como incorporando as diretrizes que vierem a ser instituídas nos projetos em que atua.
[1] Ação interposta em face de edital de concessão publicado anteriormente à vigência da Lei, e que, por óbvio, não considerava as exigências nela dispostas. Além de destacar a impossibilidade de se exigir aplicação retroativa da lei que se encontra em vacatio legis, a decisão concluiu pelo não cabimento de ADPF no caso em questão.
[2] Nos termos da a Lei nº 9.984/2000: “Art. 4º-A. A ANA instituirá normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras, observadas as diretrizes para a função de regulação estabelecidas na Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. § 1º Caberá à ANA estabelecer normas de referência sobre: II - regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento básico, com vistas a promover a prestação adequada, o uso racional de recursos naturais, o equilíbrio econômico-financeiro e a universalização do acesso ao saneamento básico; (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020) (...) § 8º Para fins do disposto no inciso II do § 1º deste artigo, as normas de referência de regulação tarifária estabelecerão os mecanismos de subsídios para as populações de baixa renda, a fim de possibilitar a universalização dos serviços, observado o disposto no art. 31 da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, e, quando couber, o compartilhamento dos ganhos de produtividade com os usuários dos serviços. (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020)” (Grifos nossos)
[3] Disponível em: https://participacao-social.ana.gov.br/Consulta/197
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