1. Introdução
Como já abordado na Parte 01[1] desta publicação, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (“ANTT”) promoveu reunião participativa[2], entre os dias 22/08/2024 a 05/09/2024, com o objetivo de discutir e receber contribuições sobre a proposta de instrução normativa que estabelecerá os procedimentos para tutela do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão rodoviária e para a aplicação de medidas mitigadoras de desequilíbrios nos referidos contratos.
Em continuidade à publicação anterior, aqui serão abordados alguns dos principais aspectos da norma, especificamente quanto às medidas para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro e regras para sua aplicação, com enfoque para as medidas mitigadoras que poderão ser adotadas.
2. Mecanismos de recomposição
A proposta de norma estabelece 7 (sete) mecanismos que poderão ser utilizados, a critério da ANTT, para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão rodoviária, salvo previsão contratual em sentido contrário: a) alteração do valor da tarifa de pedágio; b) alteração do prazo da concessão; c) aporte público; d) modificação de obrigações contratuais; e) alteração da localização ou inclusão de praças de pedágio ou pórticos de fluxo livre; f) estabelecimento ou remoção de cabines de bloqueio; e g) transferência ou retenção de valores utilizando o mecanismo de contas da concessão (art. 20)[3].
A escolha final do mecanismo será feita pela Diretoria Colegiada da ANTT, a partir de sugestão da SUROD, com base em critérios técnicos e financeiros, incluindo os seguintes: a) a extensão e a natureza do desequilíbrio; b) a viabilidade técnica e econômica das alternativas de recomposição; c) o impacto sobre os usuários, incluindo a modicidade e equidade tarifária; d) a conformidade com o contrato e sua matriz de riscos; e e) a capacidade de minimizar os impactos negativos e maximizar os benefícios para a concessão e a sociedade (art. 20, § 4º).
Vale mencionar que o normativo estabelece como preferencial a utilização dos mecanismos de alteração do valor da tarifa de pedágio ou transferência/retenção de valores por meio do mecanismo de contas da concessão, salvo quando comprovada sua inadequação no caso concreto (art. 20, § 1º).
Para a recomposição mediante aporte público, será necessário realizar consulta prévia ao ministério acerca da previsão e da possibilidade de assunção de compromisso orçamentário, sem prejuízo da necessidade de atendimento das demais disposições legais que regem o tema (art. 20, § 3º).
Ademais, sempre que o mecanismo escolhido puder impactar no plano de outorga aprovado, a SUROD deverá obter prévia anuência ministerial (art. 22).
Por fim, a proposta de norma prevê que a SUROD, sempre que possível, consultará a concessionária sobre o mecanismo de recomposição a ser adotado (art. 21), podendo haver negociação sobre a forma de implementação entre a ANTT e a concessionária, observados as diretrizes estabelecidas pela ANTT e o contrato (art. 23).
3. Medidas de mitigação
Compreendidos os mecanismos que poderão ser utilizados para a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão rodoviária, cabe destacar que uma novidade bastante relevante da proposta de norma é a criação de duas medidas que visam a mitigar o desequilíbrio econômico-financeiro enquanto o pleito principal é analisado: o reequilíbrio parcial de natureza cautelar e o reequilíbrio parcial baseado em evidência. Abaixo, detalharemos melhor cada uma delas, bem como o procedimento para sua utilização.
3.1. Reequilíbrio parcial de natureza cautelar
O reequilíbrio parcial de natureza cautelar é aplicável aos casos em que houver necessidade urgente de mitigar os impactos financeiros dos desequilíbrios na concessão, de modo a evitar maiores danos ao fluxo de caixa e à prestação dos serviços concedidos (art. 25, caput).
Para aplicação da medida, será necessário o atendimento, cumulativo, das seguintes condições: i) existência de elementos que evidenciem a probabilidade do direito da concessionária; ii) risco de dano ou perigo à continuidade e qualidade da prestação dos serviços concedidos; e iii) impacto financeiro estimado do evento ou do conjunto de eventos superior a 5% da receita bruta do último exercício financeiro (art. 25, § 1º).
O reequilíbrio parcial de natureza cautelar, contudo, não poderá ocorrer quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da medida adotada (art. 25, § 2º). Havendo risco de irreversibilidade, a aplicação da mitigadora poderá ser condicionada à prestação de garantia pela concessionária (art. 28, §6º).
Por fim, a proposta de norma indica que o reequilíbrio parcial de natureza cautelar é excepcional e deverá ser justificado detalhadamente, com a indicação dos motivos da urgência e dos riscos envolvidos (art. 25, § 3º).
3.2. Reequilíbrio parcial de evidência
O reequilíbrio parcial de evidência, por sua vez, é aplicável aos casos em que o direito ao reequilíbrio for incontroverso ou estiver em condições de reconhecimento imediato, permitindo a execução de medidas de recomposição anteriormente à conclusão definitiva do processo principal (art. 26, caput).
Essa medida será permitida exclusivamente quando a definição do valor do reequilíbrio exigir um procedimento de maior complexidade, desde que a ANTT consiga estabelecer um valor estimado do reequilíbrio futuro, que será ajustado ao final do processo administrativo (art. 26, § 1º).
Finalmente, a proposta de norma também indica que o reequilíbrio parcial de evidência é excepcional e só poderá ser considerado quando o prazo para apuração definitiva do reequilíbrio for longo e o seu valor significativo, objetivando minimizar os impactos sobre a tarifa e preservar a estabilidade e a modicidade tarifária (art. 26, § 2º).
3.3. Procedimento referente às medidas mitigadoras
A proposta de norma prevê expressamente que tanto o reequilíbrio parcial de natureza cautelar quanto o reequilíbrio parcial baseado em evidência possuirão natureza precária, discricionária e provisória, não constituindo um direito da concessionária (art. 27). Nesse sentido, a proposta de norma prevê que eventual medida mitigadora aplicada poderá ser revertida ou ajustada a qualquer tempo, seja em razão do surgimento de novas informações, da alteração das circunstâncias ou da falta de cooperação da concessionária na conclusão do processo principal de reequilíbrio (art. 30, parágrafo único). A proposta de norma não prevê que a concessionária poderá se manifestar previamente à reversão da medida mitigadora, o que foi requerido na sessão pública da reunião participativa. Na mesma oportunidade, foi também solicitado que a decisão de reversão da medida mitigadora seja plenamente justificada. A ANTT sinalizou positivamente quanto a esses dois pedidos durante a sessão pública, o que sugere que o art. 30, parágrafo único, será complementado nesse aspecto.
Para além disso, as medidas mitigadoras só poderão ser implementadas de comum acordo entre as partes (art. 27), sendo que a sua aplicação pressupõe i) a existência de processo administrativo principal de reequilíbrio, instaurado na forma prevista na proposta de norma; e ii) prévia decisão de admissibilidade do pedido principal, caso esse seja apresentado conjuntamente com o pedido de medida mitigadora (art. 24).
O processo de aplicação das medidas mitigadoras será autuado a partir de provocação da concessionária, que deverá, em seu pedido, i) indicar o tipo de medida pretendida e comprovar os requisitos necessários para sua aplicação; ii) declarar expressamente sua adesão às regras da norma aqui avaliada; iii) reconhecer o caráter precário e reversível das medidas; iv) admitir que as medidas em questão não constituem direito adquirido; e v) comprometer-se a não ajuizar ações judiciais ou iniciar procedimentos arbitrais para contestar decisão da ANTT que reverta as medidas concedidas (art. 27, §§ 1º e 2º). Essa última exigência chama a atenção por seu caráter bastante gravoso. Durante a sessão pública da reunião participativa, a ANTT esclareceu que a finalidade do dispositivo seria impor à concessionária, como uma forma de negócio processual, a condição de que ela não poderá recorrer ao Poder Judiciário ou à arbitragem para impedir a reversão da medida mitigadora, em si. Ou seja, a concessionária poderá discutir, em via judicial ou arbitral, se a decisão de reversão foi ou não correta, ou se a decisão de reversão lhe gerou ou não prejuízos, mas não poderá impedir que a reversão ocorra. A despeito desse esclarecimento, a previsão é ainda polêmica e pode despertar críticas no mercado. Após apresentação do pedido, a Superintendência de Infraestrutura Rodoviária (“SUROD”) realizará análise técnica conclusiva no prazo de 60 (sessenta) dias, admitida prorrogação (art. 28, caput). Para sua análise, a SUROD poderá requerer informações às suas gerências acerca de elementos como: i) o reconhecimento do direito ao reequilíbrio contratual ou a presença das condições para imediato reconhecimento, no caso de reequilíbrio parcial de evidência; ii) o reconhecimento da probabilidade de direito, no caso de reequilíbrio parcial de natureza cautelar; iii) a viabilidade de obtenção de valores estimados do reequilíbrio e o grau de confiabilidade dessa estimativa; iv) o tempo estimado para conclusão do processo principal de reequilíbrio; v) os possíveis impactos econômico-financeiros, positivos e negativos, ao usuário e à prestação adequada dos serviços, decorrentes da aplicação da medida mitigadora; vi) os mecanismos mais adequados para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro contratual (art. 28, §1º).
Especificamente em relação à medida de reequilíbrio parcial de natureza cautelar, a SUROD também deverá considerar: i) o impacto nas contas da concessionária, incluindo a geração de fluxo de caixa livre negativo, comprometimento dos indicadores financeiros ou impacto em dívidas financeiras; ii) o momento contratual, especialmente quando houver grandes investimentos programados e possivelmente impactados pela medida; e iii) a continuidade e a qualidade dos serviços, avaliando o risco de interrupção ou degradação dos serviços prestados aos usuários (art. 28, §2º).
Concluída a análise do pedido de aplicação de medida mitigadora, SUROD opinará pelo deferimento do pedido ou pelo seu indeferimento sumário (art. 28, caput). Em caso de indeferimento sumário, a concessionária deverá ser informada da decisão e do cronograma estimado para a conclusão do processo administrativo principal de recomposição (art. 28, §3º). A proposta de norma não estabelece a possibilidade de recurso à Diretoria Colegiada da ANTT no caso de indeferimento da medida mitigadora, mas tal previsão foi requerida na sessão pública da reunião participativa.
A manifestação favorável da SUROD, por sua vez, poderá ser de acolhimento total ou parcial do pleito, ou, ainda, proposição de ajustes no pedido formulado pela concessionária (art. 28, §5º). À SUROD caberá a elaboração da proposta de deliberação para a Diretoria Colegiada da ANTT, contendo os elementos listados na norma (art. 28, §4º).
Instruído o processo, a Diretoria Colegiada deliberará sobre a aplicação das medidas mitigadoras, em decisão discricionária (art. 30). Na sessão pública da reunião participativa, foi questionado o caráter discricionário da decisão, informado no art. 30, tendo sido requerido que a medida mitigadora seja concedida se forem preenchidos os requisitos previstos na proposta de norma. A ANTT esclareceu que esse seria o espírito do art. 30, o que sugere um possível ajuste futuro em sua redação.
Uma vez aplicada a medida mitigadora, o processo administrativo principal de reequilíbrio será considerado prioritário e deverá ser concluído em até 2 (dois) anos, conforme cronograma especificado no ato que conceder a medida, salvo se for justificada a concessão de outro prazo.
Além disso, a norma prevê que as medidas mitigadoras não poderão: (i) antecipar mais de 80% (oitenta por cento) do valor estimado do desequilíbrio econômico-financeiro em apuração; ou (ii) importar em recebimento de recursos antes do efetivo impacto financeiro do evento de desequilíbrio.
4. Considerações finais
O detalhamento trazido na norma é bastante relevante, pois, além de deixar claros os possíveis mecanismos para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão rodoviária, também prevê medidas que visam a mitigar os efeitos que os eventos de desequilíbrio possam acarretar ao contrato, enquanto o pedido principal é avaliado.
A normatização dessas disposições será importante não só para conferir maior transparência, previsibilidade e segurança jurídica quanto à atuação da ANTT, como também para garantir a continuidade da prestação adequada dos serviços, objeto principal das concessões rodoviárias federais.
[1] “O procedimento a ser seguido” – disponível em: [inserir link]
[2] https://participantt.antt.gov.br/Site/AudienciaPublica/VisualizarAvisoAudienciaPublica.aspx?CodigoAudiencia=581
[3] Mecanismos já previstos no art. 81 do RCR3.
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