Painel de Referência e Solução Consensual no TCU: A nova fronteira do diálogo institucional em grandes contratos públicos
- Navarro Prado
- há 6 dias
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Por Gustavo Toniol
QUANDO O DIÁLOGO VIRA POLÍTICA PÚBLICA
O novo papel do TCU nas grandes controvérsias administrativas
Nos últimos anos, o Tribunal de Contas da União (TCU) tem consolidado uma vertente pouco tradicional — mas cada vez mais estratégica — de sua atuação: a de facilitador institucional para a construção de soluções consensuais entre órgãos públicos e concessionárias, permissionárias ou regulados em geral. Mais do que uma mudança procedimental, trata-se de uma guinada institucional que posiciona o TCU como espaço de escuta, mediação técnica e resolução colaborativa de controvérsias relevantes para o interesse público.
Esse novo papel surgiu em um contexto marcado por crescente complexidade normativa, por judicialização de políticas públicas e pelo fenômeno conhecido como “apagão das canetas” — a paralisia decisória de gestores públicos diante do receio de responsabilizações desmedidas por instâncias de controle. Ao criar um espaço estruturado de diálogo e análise técnica qualificada, o TCU contribui para mitigar os efeitos desse cenário, oferecendo segurança jurídica, previsibilidade institucional e racionalidade econômica às decisões públicas.
A criação da Secretaria de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso) e a normatização do procedimento por meio da Instrução Normativa do TCU nº 91/2022 (IN-TCU nº 91/22) inauguraram oficialmente essa função. Desde então, casos emblemáticos nos setores de transportes, energia e comunicações vêm sendo tratados sob uma lógica que prioriza eficiência, boa-fé administrativa e governança colaborativa.
Em 2025, um marco institucional ampliou ainda mais o escopo e a legitimidade desse instrumento: o Painel de Referência no caso da concessão da Ferrovia Malha Sudeste. Pela primeira vez, um processo de solução consensual foi submetido a um debate público estruturado, com participação direta de representantes da sociedade civil, prefeitos e associações setoriais, abrindo espaço para um modelo deliberativo de construção de acordos — mais próximo do cidadão e mais atento à complexidade das grandes concessões públicas.
COMO FUNCIONA A SECEXCONSENSO
Estrutura, fundamentos e alcance do consenso no TCU
Criada pela IN-TCU nº 91/22, a SecexConsenso estrutura, de forma inédita, um canal institucional para que órgãos e entidades da Administração Pública Federal possam buscar, junto ao TCU, a construção de soluções consensuais para controvérsias relevantes sob sua competência. Embora formalizada recentemente, a iniciativa refina uma prática institucional que vinha sendo ensaiada em decisões anteriores, com foco no papel pedagógico e orientador do Tribunal, por meio de interlocuções com gestores e particulares para construir alternativas em contextos complexos.
O procedimento pode ser instaurado mediante solicitação de autoridades legitimadas — como ministros de Estado, dirigentes de agências reguladoras, presidentes de estatais, ou mesmo relator de processo em curso no TCU — e visa permitir que conflitos sensíveis sejam resolvidos sob uma lógica dialógica, técnica e estruturada, sem que isso implique renúncia de controle ou flexibilização indevida dos marcos legais e contratuais.
A solução consensual não concorre com as competências tradicionais do TCU. Ao contrário, ela as complementa, ao permitir que impasses de natureza técnica, operacional ou jurídica sejam enfrentados com foco em vantajosidade para o interesse público, redução de assimetrias informacionais e mitigação de litígios de alto custo institucional. Não se trata, portanto, de mera mediação, mas de um procedimento com potencial deliberativo e impacto concreto, cujas propostas são submetidas à homologação do Plenário, com o devido crivo do Ministério Público junto ao TCU.
A Comissão de Solução Consensual (CSC), núcleo central do modelo, é composta por representantes dos órgãos ou entidades envolvidos, da unidade técnica do TCU especializada no tema e da própria SecexConsenso, que exerce função de coordenação e facilitação técnica. O grupo tem até 90 dias — prorrogáveis uma única vez por 30 dias — para apresentar uma proposta de consenso, que será, ao final, submetida à avaliação do relator e do Plenário.
Além da resolução de controvérsias, o sistema também se presta à prevenção de conflitos futuros, permitindo o tratamento antecipado de potenciais riscos jurídicos, econômicos ou operacionais. Nesse sentido, a SecexConsenso não apenas resolve, mas antecipa soluções — e, com isso, reforça a função pedagógica e indutora do TCU na governança pública.
MAIS QUE TEORIA
Os casos reais que vêm moldando a prática da solução consensual no TCU
Desde a criação da SecexConsenso, o modelo de solução consensual tem sido aplicado em uma diversidade de casos com elevada complexidade técnica, jurídico-normativa ou econômico-financeira, sinalizando o amadurecimento institucional do TCU nesse novo papel de facilitador do consenso. Com dezenas de processos propostos, os resultados iniciais revelam a viabilidade do instrumento e a utilidade concreta na resolução de impasses estruturais da Administração Pública.
Até o primeiro trimestre de 2025, foram contabilizados mais de 30 procedimentos formais de solução consensual, dos quais cerca de 14 resultaram em acordos homologados pelo Plenário do Tribunal. Outros seguem em curso, com comissões instaladas ou relatórios em fase de conclusão. Ainda que nem todos tenham chegado a um desfecho positivo, o número crescente de atores públicos que tem recorrido ao mecanismo evidencia a demanda por instâncias técnicas de diálogo institucional.
Embora o procedimento seja formalmente restrito a determinadas autoridades legitimadas, a diversidade de temas tratados demonstra que a solução consensual tem se consolidado como instrumento estratégico em várias áreas de elevada complexidade regulatória e contratual. Os temas mais recorrentes envolvem políticas públicas e contratos dos setores de transporte, energia e telecomunicações, com destaque para demandas oriundas do Ministério dos Transportes, do Ministério de Minas e Energia e da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
“A experiência acumulada revela que a solução consensual é particularmente eficaz em cenários marcados por disputas técnicas sensíveis, risco de judicialização prolongada ou entraves regulatórios que poderiam comprometer a efetividade de políticas públicas ou a continuidade dos serviços. Observa-se um amadurecimento institucional relevante: não apenas quanto ao uso do instrumento, mas também quanto à compreensão de que a escuta qualificada e a atuação colaborativa podem produzir soluções juridicamente sólidas, economicamente vantajosas e socialmente legitimadas.
DO SIGILO À ESCUTA PÚBLICA
Os Painéis de Referência e o amadurecimento institucional do consenso
Um dos aspectos distintivos do modelo de solução consensual promovido pelo TCU é o caráter sigiloso das reuniões da Comissão de Solução Consensual (CSC). Esse sigilo é a regra — expressamente prevista na Instrução Normativa que regula o procedimento — e busca assegurar um ambiente protegido para a manifestação livre, técnica e desarmada dos participantes, sem pressões externas ou riscos reputacionais durante as tratativas.
Com o amadurecimento da prática e a consolidação de uma cultura institucional voltada à escuta ativa, surgiu uma inovação que complementa — e não substitui — essa confidencialidade: os chamados Painéis de Referência. Esses painéis não rompem com o sigilo legal das reuniões internas nem expõem documentos sensíveis ou minutas em discussão. Seu objetivo é promover escuta pública qualificada sobre temas previamente selecionados pela Comissão, preservando informações protegidas por sigilo legal ou de natureza concorrencial.
O primeiro desses painéis foi realizado em março de 2025, no âmbito do processo de solução consensual da Ferrovia Malha Sudeste (MRS). Pela primeira vez, um processo em curso foi submetido a um debate público estruturado, com participação direta de representantes da sociedade civil, prefeitos de municípios impactados pela malha, entidades do setor produtivo e especialistas técnicos.
O Painel de Referência não é uma audiência pública no sentido tradicional, mas se aproxima desse modelo. Ele serve como espaço de diálogo ampliado e qualificado, com o objetivo de subsidiar tecnicamente a Comissão e, indiretamente, informar o julgamento futuro do Plenário. Nesse novo arranjo, o TCU passa a atuar também como instância de escuta democrática e colaborativa, não apenas como julgador.
A experiência do Painel da MRS revelou o potencial transformador dessa abertura institucional. A escuta dos municípios atravessados pela ferrovia, por exemplo, trouxe luz a conflitos urbanos invisibilizados nos termos contratuais; a participação de associações setoriais, por sua vez, contribuiu com diagnósticos econômicos e sugestões de reestruturação de investimentos mais ajustadas à realidade.
Esse novo instrumento, ao ampliar a legitimidade do processo decisório e aprofundar a participação qualificada, aponta para um modelo de consenso cada vez mais sofisticado — capaz de articular técnica, legalidade, governança federativa e escuta social. Em vez de enfraquecer a confidencialidade, o Painel de Referência a complementa, oferecendo uma camada adicional de robustez e transparência institucional.
A MALHA SUDESTE E O NASCIMENTO DE UMA NOVA PRÁTICA
O Painel de Referência em ação
O processo de solução consensual referente à concessão da Ferrovia Malha Sudeste, operada pela MRS Logística S.A., marca uma inflexão relevante na trajetória da SecexConsenso. Não apenas pelo vulto do contrato — prorrogado antecipadamente em 2022 por mais 30 anos e responsável por movimentar mais de um terço de toda a carga ferroviária nacional —, mas principalmente pela forma como o TCU decidiu abrir o processo à escuta ampliada, incorporando uma deliberação pública estruturada à lógica originalmente sigilosa do procedimento.
Instaurada por solicitação do Ministério dos Transportes, a Comissão de Solução Consensual foi encarregada de discutir dois pontos centrais: (1) a proposta de alteração de 44 iniciativas de grande porte previstas no Caderno de Obrigações do contrato; e (2) a reavaliação do modelo de indenização da base de ativos e passivos, com vistas a maximizar a vantajosidade da prorrogação antecipada.
Ambas as frentes envolvem temas de alta sensibilidade técnica, contratual, financeira e regulatória — com impactos diretos não apenas sobre a concessionária e a União, mas também sobre municípios atravessados pela ferrovia e usuários do sistema logístico.
Foi nesse contexto que, em março de 2025, o TCU promoveu o Painel de Referência da Malha Sudeste — evento inédito que reuniu representantes da União, estados, municípios, concessionária, entidades setoriais e sociedade civil para debater publicamente as controvérsias em análise. O painel, transmitido ao vivo e com possibilidade de manifestações via QR Code, permitiu que prefeitos, associações de usuários, industriais e especialistas participassem diretamente da construção do consenso.
A própria condução do evento refletiu um novo ethos institucional. O presidente do TCU, ministros, auditores e coordenadores técnicos marcaram presença ativa, não apenas legitimando o processo, mas também reafirmando uma visão de controle que valoriza a transparência, a técnica e a participação federativa como instrumentos de eficiência e segurança jurídica.
Entre os temas debatidos, destacaram-se os conflitos urbanos causados pelo traçado ferroviário e a discussão sobre a destinação de recursos excedentes advindos da renegociação de obrigações. O painel evidenciou que, em casos de alta complexidade e repercussão social, o valor do consenso vai além do texto contratual: ele reside também na capacidade de incluir, ouvir e traduzir as necessidades reais dos atores afetados.
Com isso, o caso da MRS consolida-se como marco institucional: não apenas pelo conteúdo discutido, mas pela forma como foi discutido. O Painel de Referência inaugurado nesse processo tem potencial para se tornar um novo padrão de boa prática, conciliando confidencialidade estratégica com abertura democrática e técnica qualificada.
QUANDO O CONSENSO VIRA POLÍTICA DE ESTADO
O futuro institucional da escuta qualificada no TCU
O amadurecimento da SecexConsenso e a institucionalização dos painéis de referência indicam uma transição silenciosa, porém significativa, na forma como o Estado lida com controvérsias complexas no campo das políticas públicas e dos contratos administrativos. O TCU, tradicionalmente associado ao controle e à responsabilização, passa a desempenhar também o papel de facilitador de soluções técnicas construídas em diálogo com os próprios atores impactados.
Essa transformação não anula a função fiscalizatória do Tribunal — mas a amplia, ao integrar ao controle a escuta, a negociação e a racionalidade administrativa. Em vez de fragilizar a legalidade, esse modelo a fortalece, porque insere a norma dentro de um contexto técnico, econômico e federativo mais completo.
Nos bastidores dos grandes contratos de concessão, especialmente em setores como transporte, energia e infraestrutura, o consenso qualificado desponta como vetor de estabilidade institucional e eficiência pública. A experiência da Malha Sudeste demonstra que o espaço real para escuta e construção conjunta permite um resultado mais sólido, legítimo e resistente ao tempo.
A depender de sua consolidação como boa prática, os painéis de referência podem representar uma nova fronteira para a atuação estratégica junto ao TCU — não mais apenas como instância de defesa, mas como espaço de governança e construção de soluções sustentáveis para a Administração Pública e seus parceiros.
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