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Nova lei da praticagem não resolve os desafios da regulação econômica do serviço e os impactos públicos reflexos


Barco atracando no porto.


No último dia 16, foi publicada a Lei Federal nº 14.813/2024, oriunda do Projeto de Lei nº 757/2022, que regulamenta os serviços de praticagem no Brasil. O texto legal decorre diretamente do texto do PL, sem alterações. 


O PL que deu origem à lei tinha por objeto “regulamentar o serviço de praticagem e conferir segurança jurídica e estabilidade regulatória aos preços dos serviços de praticagem”. Para tanto, a nova lei altera a Lei Federal nº 9.537/97, que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional. 


A mesma Lei Federal nº 9.537/97 define “prático” como “aquaviário não-tripulante que presta serviços de praticagem embarcado” e o serviço de praticagem como “o conjunto de atividades profissionais de assessoria ao Comandante requeridas por força de peculiaridades locais que dificultem a livre e segura movimentação da embarcação” (art. 12)1. Ainda, é definida como atribuição da Marinha a regulamentação do serviço de praticagem (art. 4º, II)2. De fato, como posto hoje, a Marinha é responsável pela regulação técnica e, ainda que excepcionalmente3, econômica deste serviço. 


Basicamente, a praticagem é a atividade de condução de embarcações, na atracação e desatracação de portos, em trechos sensíveis ou que possuam restrição à navegação, de modo a garantir a segurança da embarcação, dos produtos transportados e das instalações portuárias, bem como a preservação do meio ambiente, garantindo a eficiência no tráfego. O serviço seria necessário, ao menos em sua origem, pois os comandantes das navegações normalmente estariam mais acostumados à navegação em alto mar e não especificamente às águas mais restritas de acesso a um porto. 


Em linhas gerais, as empresas de navegação contratam o prático, profissional que embarcará no navio e orientará os funcionários de modo a realizar as manobras necessárias à atracação e à desatracação de modo eficiente, com vistas a cumprir os objetivos acima mencionados.  

Como se pode ver, é um serviço extremamente específico e prestado por uma demanda restrita de profissionais, sendo os práticos contratados em fila única dentro das zonas de praticagem. Nas 21 zonas de praticagem no país, são aproximadamente 600 práticos trabalhando4. As remunerações dos práticos podem chegar, segundo consta da cobertura midiática, a R$ 300 mil  por mês5, o que, por vezes, suscita críticas por parte dos tomadores de serviços. A especialidade da profissão, que forma poucos profissionais, e a consequente necessidade de sua prestação em regime de fila são problemáticas em um ambiente regulatório que não é claro quanto à resolução de potenciais atitudes anticoncorrenciais. Isso somado à natural dependência das empresas de navegação em relação a estes profissionais, aumenta a instabilidade regulatória sob este ponto de vista concorrencial.  


Em nosso sentir, este é, justamente, o ponto central que deveria ter sido enfrentado pela nova lei da praticagem. Ou seja, apesar de ter  sinalizado timidamente a importância da repressão a eventuais casos de abuso econômico (e mesmo ao eventual risco de defasagem de valores), a lei deveria, idealmente, detalhar melhor no que consistem os riscos anticoncorrenciais ligados a este tipo de serviço e como trata-los sem intervir na liberdade dos profissionais, além de esmiuçar o tratamento dos litígios envolvendo estes preços e dividir, institucionalmente, os entes competentes para a regulação em suas funções técnica e econômica.  


Justamente, um dos grandes anseios das empresas de navegação era que a regulação econômica referente à profissão fosse de responsabilidade da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e não da Marinha. Vale dizer, a agência seria responsável por mediar temas envolvendo abuso econômico dos preços no serviço de praticagem. A regulação técnica, esta sim, permaneceria de responsabilidade da Marinha. 


Esta situação, de regulação econômica pela ANTAQ, conta com o endosso da Marinha, conforme noticiado6. Até porque a ANTAQ teria, em tese, melhores condições de regular o tema, por ser a responsável pelos serviços portuários, intimamente ligados com a praticagem.  


Tanto é que a própria Marinha criticou o texto aprovado7, chegando a afirmar que "a versão aprovada não aperfeiçoa a regulação, mas retira da Autoridade Marítima ferramentas regulatórias, pois ao alçá-las ao nível legal, dificulta sua atualização com a agilidade que o setor requer". É dito até mesmo que “a Força considera que o Projeto de Lei é contrário aos interesses públicos e ameaça a segurança da navegação, efeito oposto à legislação atual”. 

Como já mencionado, para além de classificar e dar diretrizes gerais aos serviços de praticagem, a norma não avançou no efetivo tratamento e detalhamento do risco de abuso econômico. Os dispositivos legais são abertos, acanhados no que diz respeito ao endereçamento destes litígios. A título de exemplo, leia-se:  


“Art. 13. O serviço de praticagem será executado exclusivamente por práticos devidamente habilitados pela autoridade marítima. 
(...) § 3º É assegurado a todo prático, na forma prevista no caput deste artigo, o livre exercício do serviço de praticagem, atendida a regulação técnica e econômica da atividade, nos termos desta Lei.  
Art. 14. ............................... Parágrafo único. Para assegurar a ininterruptibilidade do serviço, a autoridade marítima poderá:  
(...) II – fixar, em caráter excepcional e temporário, o valor referente aos serviços em cada zona de praticagem. (...)  
Art. 15-A. A remuneração do serviço de praticagem compreende a operação de prático, a lancha de prático e a atalaia.  
(...) § 2º No rito ordinário, o preço do serviço será livremente negociado entre os tomadores e os prestadores do serviço, reprimidas quaisquer práticas de abuso do poder econômico.  
§ 3º A autoridade marítima, mediante provocação fundamentada de quaisquer das partes contratantes, poderá fixar, em caráter extraordinário, excepcional e temporário, o preço do serviço de praticagem, por período não superior a 12 (doze) meses, prorrogável por igual período, nas seguintes hipóteses: 
 (...) II – quando comprovado o abuso de poder econômico ou a defasagem dos valores do serviço de praticagem 
(...) § 5º Conhecida a provocação de que trata o § 4º deste artigo, a autoridade marítima formará e presidirá comissão temporária, paritária e de natureza consultiva, composta de representantes da entidade prestadora de serviço de praticagem, do armador tomador de serviços de praticagem da respectiva zona e da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), a qual terá até 45 (quarenta e cinco) dias para emitir parecer consultivo.  
§ 6º A regulação econômica pela autoridade marítima respeitará a livre negociação e poderá observar a atualização monetária anual, os preços costumeiramente praticados em cada zona de praticagem, os contratos vigentes, o tempo e a qualidade do serviço” 

De forma resumida, a lei determina que o serviço de praticagem é privado, sendo sua remuneração livremente negociada, com exceção de hipóteses de abuso econômico. Nestes casos, excepcionalmente a Marinha poderá fixar o preço do serviço temporariamente, sendo formada comissão com representantes dos interessados, Marinha e ANTAQ, para emissão de parecer. 


Apesar da redação ser menos vaga do que o texto anterior, ainda não se enfrentou como a regulação econômica em casos de possível infração concorrencial deve ser realizada eficientemente, tampouco a necessidade de seu descolamento, no que tange aos entes competentes, da regulação técnica. A lei, além de acanhada, parece se olvidar de que a praticagem, apesar de constituir uma atividade privada, possui diversas inflexões públicas. Não se pode, assim, ignorar o interesse público adjacente à prestação deste serviço. Os reflexos são diversos: (i) para as empresas de navegação, a manutenção da política atual de preços de praticagem, sem uma alternativa eficaz para contestar os eventuais abusos; (ii) para determinados arrendamentos, insegurança quantos aos custos a serem incorridos, com potencial impacto na precificação da tarifa, ainda que se possa discutir ou definir a real extensão e quantificação deste impacto8; e (iii) na ponta, o possível encarecimento indevido dos serviços e produtos ao usuário final, ainda que o efeito possa não ser tão relevante no preço final, dado as demais componentes que formam o preço do transporte marítimo. 


A higidez da formação de preços referentes a estes serviços poderia ser alcançada mediante a formulação de um sistema bem definido de competências, permanecendo com a Marinha a regulação técnica da atividade, mas transferindo-se à ANTAQ a regulação econômica em caso de risco de abuso e tratamento de litígios envolvendo eventual abuso econômico. Não se propõe a intervenção, em mão pesada, do Estado na economia como entrave ao desenvolvimento; tão somente se entende que deve ser reconhecida a relevância pública da atividade e os riscos anticoncorrenciais, em especial à formação de monopólio e eventual abusividade de preços. 


A criação de um ambiente adequado para discutir eventual abusividade de preços também significa o estabelecimento de um espaço para que os práticos possam ser ouvidos e, se for o caso, demonstrar os custos, as responsabilidades e os riscos assumidos na operação, a fim de justificar a razoabilidade dos preços praticados. Trata-se, assim, de qualificar melhor o debate, evitando suposições levianas de abusividade de preços, que por vezes são lançadas na imprensa sem uma análise aprofundada.  


Nesse sentido, a análise por um órgão técnico, competente e independente, com a devida expertise e maior aptidão institucional para este tipo de regulação, como uma agência reguladora, tende a funcionar não apenas como um instrumento para que os tomadores de serviços busquem se proteger de eventuais abusividades, mas também como mecanismo de defesa para os práticos refutarem alegações indevidas de abusividade, mitigando os danos reputacionais a esses profissionais. A Marinha permaneceria, assim, com a regulação técnica do serviço, aplicando sua própria competência, independência e expertise neste âmbito, como o próprio ente defende. 


Em suma, qualquer norma que se proponha a regulamentar um serviço tão conectado à navegação – setor este fundamental para o desenvolvimento da infraestrutura pátria -, deve ter a firmeza necessária para encarar o tema em todas as suas inflexões públicas. Encarar a regulamentação do serviço de praticagem como uma atividade privada qualquer não se coaduna com a visão global, sistemática, esperada para qualquer regulamentação que envolva a navegação. Se a questão de fundo é de natureza econômica, ensejando a análise de estrutura de custos, responsabilidades e riscos, parece evidente que a ANTAQ tem melhores condições de enfrentar o desafio, em comparação à Marinha. Não que a Marinha não tenha independência e expertise no que faz, mas trata-se de dar a melhor alocação às capacidades institucionais de cada entidade. 


Espera-se, assim, que eventualmente a lei passe a abarcar estes pontos sensíveis. O setor de navegação não necessita de mero remendo, que nada irá beneficiar o setor, no mundo real.  


1 "Art. 12. O serviço de praticagem consiste no conjunto de atividades profissionais de assessoria ao Comandante requeridas por força de peculiaridades locais que dificultem a livre e segura movimentação da embarcação".

2 "Art. 4° São atribuições da autoridade marítima: II - regulamentar o serviço de praticagem, estabelecer as zonas de praticagem em que a utilização do serviço é obrigatória e especificar as embarcações dispensadas do serviço".

3 Para além da disposição que atribui à Marinha a competência para a regulamentação do serviço de praticagem, é possível analisarmos outro dispositivo da mesma lei. A norma dispõe que "o serviço de praticagem, considerado atividade essencial, deve estar permanentemente disponível nas zonas de praticagem" (art. 14, caput) e que, para assegurar tal essencialidade e continuidade, a autoridade marítima pode "fixar o preço do serviço em cada zona de praticagem" (art. 14, parágrafo único, II). A interpretação do STJ (vide REsp nº 1662196) assim se coloca: “apenas na excepcionalidade é dada à autoridade marítima a interferência na fixação dos preços dos serviços de praticagem, para que não cesse ou se interrompa o regular andamento das atividades, como bem definiu a lei”. Logo, ainda que o serviço de praticagem possua natureza privada e seja exercido livremente, sendo usualmente os preços dispostos por acordo, em casos excepcionais, a regulação econômica será realizada pela Marinha. Analogicamente, é possível avocar a competência da Marinha, por exemplo, para a regulação quanto a abuso econômico. De todo modo, não há clareza legal quanto ao exercício desta regulação econômica. Ainda que, neste texto, não se critique a liberdade para a prestação e organização dos serviços, que são privados, entende-se problemática tanto a falta de clareza legal para o exercício da regulação econômica quando necessário (e.g. discussões sobre abuso econômico), como a ausência de melhor definição institucional para a competência quanto ao exercício desta regulação, que, em nosso sentir, deveria se desdobrar em regulação técnica, a cargo da Marinha, e regulação econômica, a cargo da ANTAQ.

8 Em minuta de contrato de arrendamento que tem por objeto o arrendamento de área e infraestrutura pública no Porto de Itaqui (Maranhão) para movimentação e armazenagem de carga geral, especialmente papel e celulose, na versão submetida à consulta pública, era determinado que a Tarifa de Movimentação de Papel e Celulose tinha por finalidade remunerar a realização de atividades necessárias ao embarque e armazenagem, incluindo “custos inerentes a manobras de atracação e desatracação (...) compreendendo, mas não se limitando a custos com praticagem e rebocadores” (Cláusula 10.5.10). Disponível em: http://web.antaq.gov.br/Sistemas/WebServiceLeilao/DocumentoUpload/Audiencia%2010/IQI18%20-%20Minuta%20do%20Contrato%20de%20Arrendamento.pdf . Ao que parece, esta cláusula não subsistiu na versão final.

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