Por Lucas Navarro Prado, Caio de Almeida Faria e Ana Laura Gonçalves de Carvalho.
Texto publicado originalmente no JOTA.
A obrigação de consulta aos povos indígenas e comunidades tradicionais decorre da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), marco fundamental na proteção dos direitos dos povos indígenas. No Brasil, essa convenção foi aprovada por meio do Decreto Legislativo 143/2002 e promulgada como lei pelo Decreto 5.051/2004. Não há dúvidas, pois, de que se trata de norma de cumprimento obrigatório.
A convenção busca conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação dos direitos e da dignidade dos povos indígenas. Através do diálogo intercultural inclusivo e colaborativo, os interesses e perspectivas desses grupos são considerados de maneira adequada e respeitosa. Um ponto crucial deste marco legal é a necessidade de consulta prévia, livre e informada aos povos interessados, quando medidas legislativas ou administrativas possam afetá-los diretamente.
Nesse sentido, dispõe o art. 6º, alínea “b”, que os governos deverão “estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes”.
A consulta, como se vê, é fundamental para proteger os povos indígenas. No entanto, a Convenção é lacônica quanto ao procedimento aplicável, mencionando apenas, no item 2 do art. 6º, que as consultas deverão “ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias”. Na prática, os povos indígenas fazem uso de um “Protocolo de Consulta” (PC), i.e., documento elaborado pela comunidade, com informações quanto à sua forma de organização, história, costumes e culturas.
A comunidade, por meio do PC, indica o modo pelo qual quer ser consultada em casos de projetos e/ou medidas que afetem seu território e modo de vida. A razão pela qual existem vários protocolos de consulta, individualizados para cada comunidade, ao invés de um só protocolo para todas as comunidades, é o fato de que um único modelo certamente não respeitaria a diversidade multicultural e organizacional dos povos, distintos em seus ritos e costumes. Dessa forma, os protocolos são a manifestação, por escrito, dos usos, costumes e tradições de cada povo para responder às consultas feitas pelo Estado, refletindo a vontade coletiva de cada povo.
A observância do PC é fundamental para que a consulta não seja tratada como mera formalidade ou simbolismo pelas autoridades governamentais. Aliás, a necessidade de oitiva “efetiva e eficiente” é reconhecida pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF), como se vê no Recurso Extraordinário 1.379.751[1]. Nesse caso, o ministro Alexandre de Moraes destacou que “o dever de se ouvir previamente as comunidades indígenas afetadas não é, segundo a finalidade essencial da Constituição Federal, uma escuta meramente simbólica. Muito pelo contrário, essa oitiva deve ser efetiva e eficiente, de modo a possibilitar que os anseios e as necessidades dessa parte da população sejam atendidos com prioridade”.
O art. 7º, item 1, da Convenção 169 da OIT é expresso ao determinar que “esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente”. Ora, a obrigação em questão tem status de lei (e, para alguns, até hierarquia constitucional, por se tratar de conteúdo envolvendo direitos fundamentais). Assim, é gravíssimo o desrespeito a tal norma que, como se vê, deveria ensejar a consulta aos povos indígenas já na fase de planejamento.
Em outras palavras, quando o governo se propõe a incluir um dado projeto no Plano Nacional de Logística, suscetível de afetar os povos indígenas, como o projeto da Ferrogrão, já deveria efetivar a consulta desde esse primeiro momento. Nesse contexto, pretender postergar a consulta para a fase de licenciamento ambiental do empreendimento, como defendem alguns, implica flagrante descumprimento do ordenamento jurídico.
Assentado o entendimento de que a consulta prévia impõe o dever-poder de ouvir os povos indígenas já na fase de planejamento ― antes, portanto, de se iniciar a elaboração dos estudos de modelagem do projeto, como modelo econômico-financeiro, minutas de edital e de contrato etc. ―, vale refletir sobre como a consulta deveria ocorrer no caso da Ferrogrão.
No âmbito desse projeto, conforme estudos realizados pela ANTT, os povos potencialmente afetados seriam os das etnias Munduruku e Kayapó. Segundo os Protocolos desses povos, a oitiva prévia deveria considerar que os povos indígenas: (i) não aceitam ser ouvidos depois que as decisões já foram tomadas; (ii) não aceitam a presença de forças policiais nas reuniões de consulta; (iii) enfatizam que as reuniões devem ocorrer nas línguas dos povos indígenas afetados e que os tradutores sejam indicados por eles; e (iv) afirmam que as consultas devem ser realizadas em suas aldeias, sendo que os Munduruku exigem que o governo permaneça por mais de um dia em sua aldeia, tendo paciência com o povo indígena para que todos seus membros sejam consultados e ouvidos.
Ainda que os povos indígenas não possam impor tais protocolos de consulta, o fato é que, estrategicamente, para a construção de consenso, parece um grande equívoco simplesmente ignorar a visão desses povos sobre a forma como deveriam ser consultados. Então, no mínimo, a União deveria buscar pactuar ajustes no procedimento caso, eventualmente, entenda não ser possível seguir na íntegra os protocolos em questão.
Não é juridicamente possível, de qualquer forma, admitir que o projeto da Ferrogrão avance no âmbito do Ministério dos Transportes e do Tribunal de Contas da União (modelagem econômico-financeira, técnica e jurídica), bem como no que toca ao processo de licenciamento ambiental perante o Ibama, sem que os povos indígenas tenham sido previamente consultados.
Há, inclusive, precedente jurisprudencial neste sentido. Em 6 de dezembro de 2017, o TRF1 decidiu por manter suspenso por tempo indefinido o licenciamento ambiental em curso da mineradora canadense Belo Sun, ordenando a realização da consulta prévia, livre e informada aos indígenas afetados pelo empreendimento de acordo com o protocolo próprio, nos moldes da Convenção, só se podendo dar prosseguimento ao licenciamento após essa consulta[2].
Ignorar a consulta prévia aos povos indígenas do entorno da Ferrogrão, portanto, além de uma estratégia malsucedida até aqui por ter avolumado as resistências sociais ao projeto, caracteriza uma conduta juridicamente ilícita. Que as autoridades competentes compreendam com maior profundidade as questões indígenas envolvidas na Ferrogrão e se lembrem de que, em questões socialmente complexas, o mínimo que se espera é a legitimação da decisão pelo cumprimento estrito do ordenamento em vigor!
[1] Recurso Extraordinário 1.379.751 Pará, Relator Min. Alexandre de Moraes, 1 de setembro de 2022
[2] Ação Civil Pública 0002505- 70.2013.4.01.3903, 6 de dezembro de 2017, 6ª turma do TRF1, Relator Desembargador Federal Jirair Aram Meguerian.
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