Por Lucas Navarro Prado
Artigo publicado originalmente no portal JOTA
A Ferrogrão está novamente na pauta do dia por conta da previsão de julgamento nesta quarta-feira (31) da ADI 6553 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Isso nos traz a oportunidade de reflexão sobre um tema geral para a modelagem de projetos de infraestrutura, cujas consequências estão evidentes no caso da ferrovia. Trata-se da velha e sempre nova tentação de se tomar perigosos “atalhos” na fase de modelagem, cujo resultado costuma ser desastroso não apenas para o cronograma, mas para a própria credibilidade do projeto.
Quem trabalha no setor de infraestrutura conhece bem a pressão de se atender à janela política do mandato do chefe do Poder Executivo, ministro ou secretário da ocasião. Nesse sentido, com alguma frequência, decisões de modelagem são indevidamente adotadas a fim de encurtar o cronograma, na ânsia de atrair os louros políticos para um determinado dirigente.
Sobra compromisso com o governo; falta compromisso com o Estado e o país. Por um golpe de sorte, pode até dar certo em alguns casos e o projeto venha a ser implementado, mas o mais frequente é que a pressão política pela adoção de atalhos tenha o efeito contrário: atrasar ou, no limite, até mesmo inviabilizar.
Infelizmente, a Ferrogrão tem se mostrado mais um exemplo nesse rol de projetos prejudicados pelo viés político. Em dezembro de 2016, o governo preferiu o atalho da Medida Provisória para alterar o Parque Nacional do Jamanxim, conquanto a Constituição Federal de 1988, em seu art. art. 225, § 1º, III, deixe claro que a supressão de área de parque nacional é permitida “somente através de lei”.
Com o objetivo de sustentar o “atalho”, o governo defendeu, em linhas gerais, que a medida provisória equivale a uma lei e, assim, teria cumprido a exigência constitucional. O resultado do “atalho” está aí para ser apreciado: quase sete anos depois da edição da referida Medida Provisória, o projeto não saiu do papel, entre outros motivos, porque ainda se discute se o Parque do Jamanxim pode ou não ser alterado por medida provisória (justamente o tema principal da ADI 6553).
Para um leigo, a questão talvez se apresente como mera filigrana jurídica, sob a visão superficial de que, se a medida provisória é convertida em lei, logo, teria sido atendida a previsão constitucional. Mas assim não é, ao menos sob a perspectiva de um olhar técnico-jurídico mais apurado.
Existem diferenças relevantes no trâmite legislativo de análise e aprovação de um projeto de lei tradicional e de uma medida provisória. A tramitação da conversão de medida provisória em lei segue um rito de urgência por força do art. 62, § 6º da Constituição, o que encurta o espaço para os debates no âmbito do Congresso Nacional. A urgência da medida provisória, portanto, é incompatível com o tratamento requerido para a supressão de área de parque nacional, tema complexo, que, por natureza, merece maior ponderação e tempo para criação de consenso legislativo. Daí por que se interpreta que a exigência constitucional de “lei”, como requisito para supressão de área em parque nacional, não pode ser atendida por meio de conversão de medida provisória. É preciso seguir o rito ordinário do processo legislativo.
Aliás, muito antes mesmo da edição da referida Medida Provisória, o Supremo já havia reconhecido na ADI 3540-MC, em julgamento de 1/9/2005, no Tribunal Pleno, que “a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especialmente protegidos qualificam-se, por efeito da cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III, da Constituição, como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal” (trecho da Ementa e também da pág. 29 do voto do relator, ministro Celso de Mello).
Do ponto de vista jurídico, a utilização da expressão “princípio da reserva legal” significa ir além do atendimento do “princípio da legalidade”. Trata-se, portanto, de se exigir lei em sentido formal ou lei em sentido estrito, conceitos que, ao menos para parte da doutrina, não incluem o tipo “medida provisória”. Nesse contexto, em 2016, a adoção do “atalho” da medida provisória para o projeto da Ferrogrão embutia em si um risco considerável de questionamento jurídico. Mas se preferiu tomar o risco, por conta dos benefícios do “atalho”, ao invés de seguir o curso mais seguro.
Em fevereiro de 2019, o STF deixou inequívoco seu entendimento acerca da matéria, por ocasião do julgamento da ADI 4717, afirmando, taxativamente, que “[a]s medidas provisórias não podem veicular norma que altere espaços territoriais especialmente protegidos, sob pena de ofensa ao art. 225, inc. III, da Constituição da República”. Confrontado com esse posicionamento inequívoco do STF, o governo preferiu insistir no “atalho” e o vem fazendo desde então no âmbito da ADI 6553, agora ajustando um pouco seu argumento, na linha de que houve uma “inovação” jurisprudencial e que, portanto, não deveria ensejar efeito retroativo.
Ora, se o governo tivesse desde o início adotado o caminho seguro (ainda que mais longo) de encaminhamento de projeto de lei, há muito essa discussão estaria superada. Prefere, no entanto, a guerra de narrativas, promovendo o desgaste do Supremo Tribunal Federal e do próprio ministro Alexandre de Moraes, que deferiu a liminar para suspender o projeto da Ferrogrão, ainda que isso apenas alongue a perspectiva de implantação da ferrovia.
Com o devido respeito, o STF tem lá um rol extenso de decisões passíveis de questionamento, mas é injusto querer colocar na conta do tribunal o suposto atraso da Ferrogrão, ainda mais quando havia sinais fortes (desde 2005) e inequívocos (desde 2019) que não admitiria a supressão de área de parques nacionais por meio de medida provisória. O tensionamento das relações institucionais, entre Executivo e Judiciário, simplesmente não se justifica no caso concreto.
Veja-se que a liminar do ministro Alexandre de Moraes foi dada em março de 2021, mais de dois anos atrás. Depois de tanto atraso e polêmicas envolvendo a Ferrogrão, não seria muito mais simples (e convergente com o suposto interesse sua implantação) que o governo federal encaminhasse projeto de lei ao Congresso, para superar de vez a questão?
Infelizmente, no entanto, a estratégia continua a ser a busca pelo convencimento do STF, no sentido de ignorar sua própria jurisprudência e, assim, sua interpretação da Constituição. Insiste-se na “guerra de narrativas” para pressionar o STF. Pode até dar certo neste dia 31, se o Supremo se curvar à pressão política e deferir algum tipo de modulação de efeitos do entendimento firmado na ADI 4717 para liberar o prosseguimento da Ferrogrão, mas essa estratégica terá causado um atraso gigantesco na implantação da ferrovia.
Por derradeiro, a mesma estratégia, do “atalho”, também parece ter sido empregada na questão da oitiva dos povos indígenas. O governo defende que essa oitiva acontecerá, de forma extensa e sistematizada, por ocasião do procedimento de licenciamento ambiental do empreendimento, a ser conduzido pela futura concessionária. Em outras palavras, alega que não precisa fazer agora, sendo suficientes os parcos encontros até então promovidos para discutir o projeto.
Só que os artigos 6º e 7º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a que o Brasil se vincula, apontam que “os governos deverão: (…) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente” e “esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente”.
Não teria sido melhor, nesse contexto, já ter envolvido os povos indígenas, desde o início, de forma sistemática, nos debates envolvendo a Ferrogrão? Quanto tempo teria sido economizado se a pressa política não houvesse imposto esse atalho?
Não se quer aqui fazer uma crítica ao mérito da Ferrogrão, nem inviabilizar seu prosseguimento. Porém, é preciso refletir mais profundamente sobre a forma de conduzir projetos de infraestrutura com a magnitude e a complexidade como o caso da Ferrogrão. Eles requerem a construção de consensos. Não podem ser simplesmente impostos, nem se fundamentar em premissas que ficam à mercê de teses jurídicas desafiadoras e do possível entendimento dos tribunais.
Que o caso da Ferrogrão sirva de lição para um maior amadurecimento dos gestores públicos, governantes e consultores, auxiliando-nos no sentido de tomada de melhores decisões em casos futuros. Urge afastar a tentação dos “atalhos”, que, mais adiante, mostram-se verdadeiras armadilhas.
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