Em abril de 2024, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (“ANTT”) regulamentou o uso dos Dispute Boards na Resolução ANTT nº 6.040/2024, que alterou a Resolução nº 5.845/2019.
Referida Resolução estabelece regras procedimentais para prevenir e resolver disputas de natureza predominantemente técnica, relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, abrangendo os seguintes assuntos: (i) execução de serviços e obras, incluindo alternativas de engenharia mais adequadas aos propósitos do contrato e seus respectivos orçamentos; (ii) conformidade das obras e serviços com os parâmetros estabelecidos pela regulação e pelo contrato, juntamente com seus respectivos orçamentos; (iii) avaliação de ativos e cálculo de compensações; e (iv) eventos que afetem o cumprimento das obrigações contratuais, incluindo a determinação dos impactos financeiros decorrentes desses eventos.
Destacamos, no texto abaixo, algumas considerações sobre os dispute boards e sobre a Resolução ANTT nº 5.845/2019, alterada pela Resolução ANTT nº 6.404/2024.
1. COMO SE DEU A CONTRATUALIZAÇÃO DOS DISPUTE BOARDS NAS DIFERENTES ETAPAS DO PROCROFE?
A contratualização dos dispute boards variou ao longo das diferentes etapas do Programa de Concessões de Rodovias Federais (“PROCROFE”).
Os contratos da 1ª e da 2ª Etapas do PROCROFE (1994-1998 e 2008-2009, respectivamente) não previram os dispute boards, tampouco contemplaram cláusula de solução de controvérsias, inclusive no que tange a outras formas de resolução de litígios, como arbitragem e mediação, por exemplo. Tais instrumentos apenas previam cláusula de foro judicial.
Os contratos da 3ª Etapa do PROCROFE (2013-2015), por sua vez, contemplaram cláusula de resolução de controvérsias, porém sem previsão de dispute boards, tampouco de formas de autocomposição de conflitos. Tais contratos somente previram a arbitragem.
Já os primeiros contratos da 4ª Etapa do PROCROFE (concessões da ViaSul, Ecovias do Cerrado, CCR Via Costeira e Ecovias do Araguaia, de 2019 a 2021) não previram os dispute boards, mas passaram a estabelecer a possibilidade de mediação e de autocomposição de conflitos, ainda que restrita ao acordo entre as partes e perante câmara de prevenção e resolução administrativa de conflitos.
A partir da concessão da CCR RioSP (2022), os contratos da 4ª Etapa do PROCROFE passaram a prever três alternativas de composição de conflitos: (i) a autocomposição; (ii) a arbitragem; e (iii) os dispute boards. Nesses contratos, foi feito um detalhamento maior para todos os métodos de composição dos conflitos.
No contrato da Rota dos Cristais, que inaugura a 5ª Etapa do PROCROFE, foi mantido, de forma geral, o mesmo desenho dos últimos contratos da 4ª Etapa, prevendo a autocomposição de conflitos, a arbitragem e os dispute boards, porém, com maior detalhamento em relação ao tema dos dispute boards. A título exemplificativo, o contrato da Rota dos Cristais prevê rol de temas que poderão e que não poderão ser submetidos ao dispute board, além de mencionar a possibilidade de contratação de perito externo.
2. COMO SÃO OS DISPUTE BOARDS NA RESOLUÇÃO ANTT Nº 5.845/2019, ALTERADA PELA RESOLUÇÃO Nº 6.040/2024?
2.1. Visão geral
De forma geral, a Resolução ANTT nº 5.845/2019 representa uma caixa de ferramentas ao gestor público para criar a cláusula de dispute board conforme as necessidades do contrato e a maturidade da agência.
2.2. Regras gerais
A Resolução ANTT nº 5.845/2019 prevê que, em caso de divergência entre disposições da resolução ou contratuais, prevalecerão as contratuais (art. 1º, § 2º).
Além disso, nos termos da Resolução ANTT nº 5.845/2019, os dispute boards são aplicáveis também para contratos de subconcessão (art. 1º, § 3º).
Por fim, vale destacar, como regra geral, que a Resolução ANTT nº 5.845/2019 prevê um rol exemplificativo de direitos patrimoniais disponíveis e temas passíveis de submissão aos dispute boards (art. 2º, parágrafo único), cabendo citar, por exemplo, questões relativas a reequilíbrio econômico-financeiro e indenizações decorrentes de extinção contratual.
2.3. Competências
Nos termos do art. 26-A, §§2º e 3º, da Resolução ANTT nº 5.845/2019, o escopo de atuação dos dispute boards é bastante amplo.
Com efeito, segundo a Resolução ANTT nº 5.845/2019, os dispute boards poderão dirimir controvérsias futuras ou já existentes, sendo que o escopo de sua atuação poderá ser ampliado por aditivo contratual. Além disso, como já afirmado, o rol de direitos patrimoniais disponíveis e de temas passíveis de submissão aos dispute boards é meramente exemplificativo.
A Resolução ANTT nº 5.845/2019 prevê poucas exceções expressas de temas não passíveis de submissão aos dispute boards. São elas: (i) questões de cunho estritamente jurídico; (ii) temas relacionados à validade/legitimidade de atos da ANTT; e (iii) assuntos relativos à legalidade de normas da ANTT).
A exceção prevista no item “ii” merece interpretação cautelosa/restritiva, para não impedir a análise, pelos dispute boards, de questões técnicas cuja resolução possa demonstrar eventual invalidade de autuações (ato fiscalizatório da ANTT).
2.4. Grau de vinculação
Nos termos da Resolução ANTT nº 5.845/2019, as decisões dos dispute boards poderão ser vinculantes ou recomendatórias (art. 26-B), ressalvado o direito de serem discutidas em arbitragem ou judicialmente, conforme previsão contratual.
2.5. Tipos de dispute boards (critério temporal)
Segundo consta do art. 26-B da Resolução ANTT nº 5.845/2019, os dispute boards poderão ser: (i) permanentes (durante todo o contrato); (ii) temporários (com vigência limitada a um grupo específico de obrigações ou fase de investimentos); ou (iii) ad hoc (voltados à solução de controvérsias específicas).
2.6. Composição
De acordo com o art. 26-D da Resolução ANTT nº 5.845/2019, os dispute boards serão compostos por três membros, sendo: (i) um indicado pela ANTT; (ii) um indicado pela Concessionária; e (iii) o presidente, escolhido de comum acordo entre a ANTT e a Concessionária.
Ademais, por força da Resolução ANTT nº 5.845/2019, os membros dos dispute boards: (i) deverão ter formação técnica e experiência profissional reconhecidas (art. 26-D, § 1º, II); e (ii) estarão sujeitos às mesmas regras sobre impedimento e suspeição aplicáveis a juízes (art. 26-D, § 5º).
Por fim, a Resolução ANTT nº 5.845/2019 estabelece que os honorários dos membros dos dispute boards não poderão ser excessivamente onerosos (art. 26-D, § 7º). No entanto, não há definição do que seria onerosidade excessiva, o que pode causar alguma dificuldade na aplicação dessa disposição da Resolução ANTT nº 5.845/2019.
2.7. Oposição a parecer vinculante
Nos termos da Resolução ANTT nº 5.845/2019, a ANTT poderá se opor ao cumprimento de decisão proferida por comitê adjudicatório caso sejam violadas as diretrizes da Resolução ou as regras procedimentais do regulamento da câmara escolhida.
Conquanto não haja menção expressa na Resolução ANTT nº 5.845/2019, entende-se que essa prerrogativa também vale para a Concessionária.
2.8. Custos
Segundo a Resolução ANTT nº 5.845/2019, as despesas dos dispute boards deverão ser antecipadas pela Concessionária e compensadas em 50% (cinquenta por cento) do valor despendido, na revisão ordinária subsequente ao encerramento dos trabalhos dos dispute boards e à comprovação do desembolso (art. 26-I).
2.9. Contratos já existentes
Conforme consta da Resolução ANTT nº 5.845/2019, contratos que não contenham cláusulas prevendo dispute boards ou que não contenham cláusula compromissória de arbitragem podem ser aditados (art. 27, caput).
No caso de controvérsia já existente, independentemente de aditivo, pode-se firmar compromisso de constituição de dispute board (art. 27, parágrafo único).
3. COMO OS DISPUTE BOARDS DA RESOLUÇÃO ANTT Nº 5.845/2019, COM REDAÇÃO ATUAL, FORAM CONTRATUALIZADOS?
Os dispute boards previstos na Resolução ANTT nº 5.845/2019, com redação alterada pela Resolução ANTT nº 6.404/2024, foram contratualizados pela primeira vez no projeto da Rota dos Cristais, que, como já afirmado, inaugurou a 5ª Etapa do PROCROFE.
Nessa modelagem, foi previsto dispute board do tipo ad hoc e facultativo, cujas decisões terão natureza de parecer com caráter recomendatório.
No contrato da Rota dos Cristais, o dispute board somente poderá solucionar controvérsias técnicas ou econômico-financeiras, excluídos conflitos sobre: (i) questões estritamente jurídicas; (ii) validade ou legitimidade dos atos da ANTT de fiscalização e gestão contratual; e (iii) legalidade de normas da ANTT.
O contrato da Rota dos Cristais prevê, ainda, que os seguintes regulamentos poderão ser aplicados ao dispute board, mediante consenso entre a Concessionária e a ANTT: (i) ICC; (ii) CAM-CCBC; ou (iii) CIESP/FIESP.
Por fim, o contrato da Rota dos Cristais contempla todo um detalhamento acerca das regras de composição e impedimento/suspensão de seus membros, de forma alinhada às disposições da Resolução ANTT nº 5.845/2019.
Como visto acima, a recente alteração na regulamentação da ANTT trata de diversos pontos relevantes sobre os dispute boards, que certamente devem fomentar sua utilização em projetos e poderão inspirar até mesmo modelagens de outras esferas e setores.
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** Este material foi produzido pelo grupo de estudos de rodovias composto por Renata Faria, Caio Faria e Maria Clara Fernandes Ferreira
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